Zilda Arns nos deixou a valiosa lição de que, no campo social, as soluções simples são as que dão melhores resultados.
A doutora Zilda Arns, que perdeu a vida no trágico terremoto no Haiti, nos deixou a valiosa lição de que, no campo social, as soluções simples são as que dão melhores resultados.
A Pastoral da Criança, fundada por ela em 1983, se converteu num exemplo de tecnologia social justamente porque não enveredou por caminhos desnecessariamente complexos.
Apoiada numa rede de voluntárias, a pastoral conseguiu derrubar a mortalidade e a desnutrição infantil no país adotando medidas singelas, como a difusão do soro caseiro para combate à diarreia e a desidratação.
Como dizia a dra. Zilda, “tudo o que a pastoral faz é simples”. Foi assim que nasceu a ideia de criar misturas nutricionais com sobras de alimentos antes rejeitadas pelas comunidades pobres. Nas mãos das voluntárias da pastoral, cascas de frutas e legumes se transformaram em misturas capazes de levar saúde e reduzir drasticamente a desnutrição de milhares de crianças em todo o país.
Ela também nos deixou outra lição igualmente simples e fundamental: a informação e a conscientização das famílias, especialmente das mulheres, é fator decisivo para a criação de um novo ambiente de cidadania nas comunidades carentes.
As voluntárias da pastoral se mobilizam para atender as crianças. Sua ação se dá com as mães e gestantes que recebem informações sobre higiene, cuidados com pré-natal e as crianças e sobre os direitos dos pequenos num país onde as garantias legais muitas vezes teimam em não sair do papel. Com esse suporte, as mães atendidas recuperam a autoestima e conseguem enfrentar melhor os desafios da maternidade.
Mas nada disso teria o efeito espetacular que hoje se conhece se não houvesse a dimensão comunitária que a pastoral soube imprimir em sua atuação. As mais de 260 mil voluntárias da entidade vão a campo com genuíno interesse em dar apoio às famílias das classes menos favorecidas.
Essas guerreiras são da própria comunidade em que atuam. Conhecem os problemas que estão ao seu redor e têm a legitimidade necessária para passar adiante o conhecimento acumulado. Juntas, elas formam uma rede de proteção e apoio que não resulta apenas nas condições nutricionais das crianças e na condução adequada da gestação. O impacto do trabalho da pastoral pode ser sentido também na redução da violência doméstica e no melhor planejamento familiar.
Esse trabalho em rede talvez seja o melhor exemplo de voluntariado de que se tem notícia no país. As mulheres aprendem umas com as outras, recebem capacitação da pastoral e angariam novas parceiras pelo caminho.
Foi essa bem construída rede de colaboração que permitiu à pastoral se transformar numa referência não só no Brasil, onde atende mais de 1,8 milhão de crianças e 95 mil gestantes em mais de 42 mil comunidades de 4.066 municípios.
A expertise da pastoral chegou a países da América Latina e da África graças ao vigor da dra. Zilda na difusão de seu modelo em regiões pobres do mundo. Ela não estava no Haiti por acaso. No momento em que boa parte das famílias brasileiras goza de férias de início de ano, Zilda Arns embarcou para o Haiti para levar a mensagem da Pastoral da Criança ao país mais pobre das Américas.
É emblemático que ela tenha perdido a vida nesse desastre. A dra. Zilda não era uma mulher de gabinete. Ela ia a campo e viveu intensamente o papel de missionária que sonhou para si aos 15 anos de idade.
Sua ida ao Haiti, um país devastado pela guerra civil e pelos conflitos sociais, só ressalta o compromisso que tinha com a pastoral e a melhoria de vida das famílias pobres.
A perda de uma figura tão brilhante em situação tão trágica nos impele a buscar lições que possam gerar novos frutos. E não são poucas as boas ideias deixadas por essa médica pediatra e sanitarista que revolucionou a questão da saúde infantil no Brasil.
Que a simplicidade e a eficácia defendidas por ela continuem a prosperar entre nós. E que o trabalho voluntário das mulheres da pastoral prossiga, sirva de exemplo e ganhe cada vez mais relevância no Brasil e em outros países. É o que esperam as crianças que dependem da generosidade alheia para vencer os desafios da existência e todo o conjunto daqueles que lutam por uma sociedade mais justa.
Milú Villela é membro fundador e coordenadora da Comissão de Articulação do movimento Todos pela Educação, além de presidente do Faça Parte, do Centro de Voluntariado de São Paulo, do MAM (Museu de Arte Moderna de São Paulo) e do Instituto Itaú Cultural.
Folha de S. Paulo – SP Data 22/01/2010